A total desconexão das instituições brasileiras frente aos problemas do cotidiano da população representa o grau de fragilidade da nossa democracia.
Não seria alarmismo afirmarmos, mediante as turbulências no cenário internacional e frente a insistente polarização política na sociedade brasileira, que a nossa democracia passa por um momento delicado e de grande fragilidade. A situação piora de forma exponencial quando, frente a conjuntura turva, observamos comportamentos completamente surreais advindos do Supremo e do Congresso Nacional.
Nas últimas semanas, assistimos incrédulos à tentativa de um grupo grande de parlamentares de submeter à aprovação um Projeto de Lei que equipara aborto a homicídio. Segundo a proposta, seria possível que mulheres tivessem penas similares ou até superiores a estupradores, por exemplo. Cenas bizarras como a encenação de um feto e discursos completamente insólitos, marcaram a defesa contendente de um absurdo legislativo que, só não prosperou, porque seu teor soou bizarro até mesmo para certas bases de eleitores conservadores, que viram na proposta um verdadeiro devaneio, além é claro, da repercussão negativa em toda sociedade, de forma geral.
Já nos últimos dias, acompanhamos a decisão do Supremo Tribunal Federal em descriminalizar o porte de até 40 gramas de maconha para o uso pessoal. A polêmica decisão da Corte, obviamente trouxe debates sobre temas como saúde pública e segurança, e atende a uma provocação antiga de setores da sociedade que cobram esclarecimentos quanto a Lei de Drogas de 2006, que tem falhas e é pouco clara quando ao seu objeto. Seja como for, a decisão parece vir em péssima hora. Sem qualquer legislação complementar sobre a comercialização, regulamentação do uso ou demais dispositivos que tratem do tema, a Corte parece lavar as mãos frente às óbvias consequências no comércio varejista (o tráfico), que consequentemente se beneficiará da decisão a partir do nítido aumento dos lucros advindo das vendas. Em consequência, sem legislação que trate de forma séria e objetiva do assunto (seja para proibir ou liberar – sem juízo de valor aqui), o que teremos será o recrudescimento dos arsenais e a disseminação do uso de substâncias sem qualquer controle ou qualidade, aumentando ainda mais o risco a usuários e a toda sociedade no que diz respeito a saúde.
Os dois assuntos, tratados de formas distintas por cada uma das instituições de Estado, são muito relevantes, e não se trata nessa peça de desqualificar os temas e os debates advindos dos mesmos. Mas será que, nesse momento do Brasil, são realmente essas as pautas mais relevantes e que demandam noção de emergência por parte das autoridades? No momento onde as facções criminosas se espalham pelo país, dominam cidades, transitam por municípios nas fronteiras nacionais, adquirem empresas de ônibus, postos de gasolina e já ocupam de forma substancial cadeiras no parlamento de cidades e estados, seria o recrudescimento e a criminalização do aborto um tema central e indispensável? Na hora em que uma verdadeira explosão de violência toma conta das principais capitais, onde pessoas simples e em bairros pobres já não podem transitar com seus celulares pagos à prestação, onde carteiras ou um relógio tem sido o preço de vidas, seria a descriminalização da posse de maconha o objeto a ser julgado pelo STF?
O Brasil é um país continental e marcado por diferenças profundas, mas algumas realidades perversas parecem estar se “nacionalizando”, o que traz risco à soberania nacional, a paz social e à liberdade das pessoas. Quem mora no Rio de Janeiro não estranha mais (infelizmente) a existência de territórios onde imperam “leis fora da lei”, onde grupos armados literalmente tocam o terror e tratam moradores sob a ditadura do fuzil. Até aqueles que romantizavam a ação de facções ou milicianos já recorrem ao silêncio frente à barbárie desses quem colocam morador no “pneu” (forma de execução) só por conta de uma discussão ou pelo não cumprimento de determinada “regra” comunitária. Essa assustadora realidade, infelizmente, parece estar se espalhando de forma rápida pelo país. O registro de comunidades dominadas por grupos armados em Estados como Ceará, Rio Grande do Sul, Amazonas, Espírito Santo e outros, demonstra a extensão do nosso drama e a emergência por soluções.
Poderia tecer aqui mais um conjunto de assuntos, mas falo de forma mais objetiva sobre a violência das facções, milícias e demais quadrilhas de assalto a carro e celular, porque esse é o tema de maior incidência nas pesquisas de opinião sobre os problemas das cidades para as eleições de 2024. Mas, frente ao óbvio grito das populações por soluções, o que fazem nossos representantes e juízes? Optam, de forma irresponsável, por lançar sobre a sociedade debates sobre temas completamente desconectados da realidade objetiva, de momento, e que aflige a maioria dos contingentes populacionais das cidades brasileiras.
A miopia das instituições é grave. Na esteira de tal desconexão com a realidade, vem o desespero e a desesperança, combustíveis explosivos que já alimentam narrativas intervencionistas. O óbvio e justificado questionamento ao arranjo democrático está dado, e as fragilidades da nossa república estão totalmente desnudas, expostas nas telas das tvs ou celulares de cada brasileiro e brasileira.
Ou as instituições acordam, e de forma corajosa tomam para si a responsabilidade de construir consensos e enfrentar os problemas centrais pelos quais passa o país, ou nossa democracia entrará em descrédito profundo sem possibilidade de reversão, sendo iminente um rompimento da ordem jurídica com consequências impensáveis.
Está dado o alerta.